quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Samba para amenizar a dor e o tédio


Mais de um mês sem postar. Com o início das aulas ficou difícil escrever. Para retirar essas teias de aranha e compensar o tempo perdido só mesmo uma boa história. Este é Waldir 59, uma das pessoas mais lindas que já conheci. Apaixonem-se:

As cores da antiga bandeira da Portela, estendida na casa de seu Waldir 59, já não têm a mesma vida. O passar dos anos foi cruel com o pedaço de pano azul e branco e também com o compositor da escola de samba fundada por Paulo Benjamin de Oliveira em 1923. Hoje, esses tons não passam de vultos para Waldir de Souza, de 81 anos, portador de uma doença hereditária que compromete sua visão. Por intuição ou vontade, muitos objetos no humilde apartamento no Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio, têm as cores da escola: o lençol de corações que cobre um dos sofás, os copos de vidro na cozinha, o porta-retrato que exibe uma reportagem sobre ele, além do sapato, da calça de linho e da camisa com a foto do amigo Candeia. Tudo ali respira Portela.

Se a visão não está a seu favor, os ouvidos permanecem aguçados e a mente trabalha a todo vapor. Seu Waldir é membro da comissão julgadora dos sambas da agremiação e continua compondo, mas sozinho. Nascido e criado em Oswaldo Cruz, bairro carioca onde surgiu a escola do coração, o sambista conheceu o compositor Candeia ainda na infância. As brincadeiras na rua deram início a uma grande amizade e parceria. Juntos, eles assinam muitas composições, como “Riquezas do Brasil”, samba-enredo da Portela de 1956.

Os dois amigos estavam unidos no dia do casamento de Waldir, no qual Candeia seria o padrinho. Seria, se a noiva, Ivone Machado, não desistisse em cima da hora. “A festa estava pronta, mas ela voltou atrás. Ele era muito mulherengo, dava muito trabalho”, conta a filha Rosilene, a grande companheira do pai. Waldir estava com Candeia no dia da confusão de trânsito que deixou o amigo paraplégico. “Naquela noite, algo me dizia para ir com ele”, conta. Companheiros na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, a morte os separou em 1978. As lembranças ficam apenas na memória, porque seu Waldir perdeu a pasta com todas as recordações do amigo, que ficava no carro que foi roubado. O único objeto que restou foi a camisa com a foto do parceiro de composições, que traz os dizeres “luz da inspiração”, um presente da filha de Candeia ao melhor amigo de seu pai.

Ivone e Waldir não se casaram no papel, mas viveram juntos durante anos e tiveram seis filhos. Depois dela, veio Almerinda, mulher com quem o compositor se relacionou até o ano passado. Ela também não aguentou as puladas de cerca do portelense. Em uma viagem para Brasília com sua escola de samba, Waldir 59 se apaixonou mais uma vez e até hoje não sabe dizer por que uma jovem, entre tantas belas passistas da cidade, o chamou a atenção de uma maneira singular. Disposto a conquistá-la, ele foi até a casa da jovem de 17 anos e deu de cara com a “futura sogra”. A mulher o reconheceu na hora. “Tivemos um relacionamento aqui no Rio de Janeiro e, sem que eu soubesse, ela ficou grávida”, sussurra ele, para que Rosilene não escute. A jovem que o encantou era, na verdade, sua filha.

Conquistador, ele ficou conhecido como “59” não pelo número de mulheres no currículo, mas pelas coincidências que envolvem o algarismo: era o número da casa onde ele morava, da matrícula na Portela, de dois dos dígitos do telefone e da placa do carro, além de ser o ano de uma vitória no samba. A vida do membro da Velha Guarda da Portela está longe de ser a mesma que era em 1959. Praticamente cego, ele trocou a boemia das ruas pelo sossego do lar. Quase não sai de casa e precisa de ajuda para tudo. Rosilene é praticamente a mãe de seu pai: cozinha, limpa a casa e deixa suas roupas “coordenadas”, como ela chama, para que ele esteja sempre bem vestido e combinando.

Veja alguns momentos da entrevista com Waldir 59:



Apesar dos contratempos, o velho boêmio não parou de trocar o dia pela noite. Com medo de deixar o pai sozinho, Rosilene bem que tentou fazê-lo morar com ela, mas não deu muito certo. “Ele fica acordado até tarde com o rádio ligado e as luzes acesas. Meu marido e eu não conseguíamos dormir”. Para ter de novo a sensação de liberdade, às vezes ele sai de casa sem avisar, deixando os filhos com os nervos à flor da pele. Sem contar com as voltas que leva. Outro dia foi de um taxista, que ficou com uma nota R$100, ao invés de R$2. Faxineiro do condomínio há quatro anos, Joaquim Cesário dos Santos ajuda seu Waldir com pequenos serviços mecânicos e elétricos. Os dois costumam jogar conversa fora e o proprietário do apartamento 419 tira sorrisos do funcionário do prédio. “Admiro muito a alegria dele”, conta Joaquim.

Sem dinheiro e com a fama de marido infiel e pai ausente por conta da vida noturna, o flamenguista Waldir 59 acha que não tem mais nenhum sonho a realizar. Nem os problemas de visão, nem o fato de ter perdido um filho por causa das drogas tiram a alegria de viver do homem que, como em uma de suas canções, encontrou no samba o remédio eficaz para amenizar a sua dor e o seu tédio.


Seu Waldir e Eu, quando o conheci em um show que homenageou Candeia

8 comentários:

  1. Lindo, lindo , lindo... Que dia que tivemos!Naquela manhã vivemos +_ uns 3 anos! Quantas lições que foram tiradas daquele momento! Como é bom saber que existe pessoas assim no mundo e que estão tão próximas de nós , mas parecem estar tão distante.
    Vamos viver com alegria! Sempre!
    Parabéns pelo texto, nath! Que texto mais suave e gostoso de ler.
    Quero ler mais coisas suas!!!! Posta com mais frequência!
    beijoss!!!

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  2. Naaaath, esse perfil ficou lindo. Super delicado e singelo.
    Muito simpático esse seu Waldir.
    Tenho certeza de que ele guarda mil e uma histórias sobre o nosso samba.
    Que a felicidade dele seja imortal!

    Um beijo

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  3. Nath, eu sempre adorei ler seus textos, mas esse está especialmente apaixonante! Que figura linda esse seu Waldir é! Seu olhar de jornalista e sambista acertou na escolha do personagem.

    Parabéns! Beijo grande da Vivi.

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  4. Oi !!!Sou Anita, muito amiga de seu Waldir no momento! Ele me falou que voce tinha ido lá e que eu devia te conhecer! nos podemos encontrar todos um dia! que acha? meu email é brasil.anita@gmail.com
    te espero!
    anita.
    obs: a bandeira da portela , da porta bandeira do coração do nosso querido waldir, tava na cozinha embaixo de um montao de coisas...eu tirei ela de lá, dai deixei no sofá! que bom que voce viu e amou ela como eu amei! agora eu pindurei la na casa do seu waldir junto com o desenho dele moço! ta uma beleza! beijos

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  5. Tenho certeza que, com um personagem deste peso, foi difícil reduzir o texto a duas laudas. Mas, não pra minha surpresa.. você tirou de letra.

    Parabéns amiga, nota 10 do Dapieve e minha também.

    Beijos mil
    Nanda (Ralile)

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  6. vc é mesmo muio cativante, né, Nath? Encantou o seu Waldir, vê? Até a Anita veio atrás de vc!
    mais uma vez: texto lindo!

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  7. Gostei muito da Matéria, parabéns Nathalia!
    Aguardo a matéria do Bairro do Catete.
    Vamos colocar um link lá no site do Bairro do Catete, direcionando para a matéria?
    Abraços
    O Rescator

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  8. Adorei teu texto.
    Sutil, mas tão profundo na hora de fazer a homenagem devida a alguém!
    Posta com mais freqüência, Nath.

    Beijos

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